Praticamente todos os tipos de Steven Spielberg aparecem em Jogador Nº 1. Ao longo das 2h20, o diretor apresenta suas diversas facetas desenvolvidas e aprimoradas ao longo das décadas de trabalho. É possível ver o Spielberg nostálgico, o infantil, da aventura, do suspense, o melodramático, o romântico, o apaixonado por cinema e alguns outros. Mas a conexão entre essas qualidades é por vezes frágil. Isso por que faltou a principal versão do diretor: “O” Steven Spielberg.
Jogador Nº 1 busca a nostalgia desde o primeiro minuto. O sintetizador de Eddie Van Halen na clássica canção Jump (Van Halen, 1983) dá o tom para a atmosfera da aventura de ficção científica. O timbre do instrumento ecoa a nostalgia oitentista com seu aspecto retro e futurista. Além de definir a atmosfera, a energia da canção determina o ímpeto juvenil e a identidade do protagonista Wade Watts e seu avatar Parzival, ambos interpretados por Tye Sheridan. Enquanto a melodia esculpe o personagem, a primeira estrofe de Jump determina todo o viés da obra.
I get up, and nothin’ gets me down (Eu me levanto e nada me faz cair)
You got it tough, I’ve seen the toughest around (Tá difícil pro teu lado, Eu já vivi o mais difícil possível)
And I know, baby, just how you feel (E eu sei, baby, como você se sente)
You got to roll with the punches and get to what’s real (Você tem que se virar com os socos para conseguir o que é real)
A partir dessa breve e precisa construção, o filme se apresenta para o espectador.
É 2044. Wade é apenas mais um dos milhões (talvez bilhões) de jogadores do Oasis, um jogo de realidade virtual aparentemente ilimitada que é muito melhor do que o mundo real paupérrimo e populoso onde vive. Antes de morrer, Halliday (Mark Rylance), criador do Oasis, figura quase divina na sociedade e o mentor da Jornada de Wade, escondeu três easter eggs no jogo. Quem encontrá-los receberá não apenas uma fortuna, mas também será o novo dono do Oasis. Enquanto Wade e outros jogadores buscam os segredos como forma de libertação de um mundo desigual, Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn), presidente da segunda indústria mais rica do mundo, busca vencê-lo para se tornar o homem mais rico e poderoso de todos.
Jogador Nº 1 é um filme simples na sua essência. Através de uma narrativa funcional Spielberg busca elaborar um novo clássico recheado de aventura juvenil, referências – e uma carta de amor – à cultura pop e, principalmente, nostalgia. Para isso, o diretor e os roteiristas Zak Penn e Ernest Cline (autor do livro homônimo no qual o filme adapta) utilizam o ‘herói acidental’ (ou ‘serendipitoso’) do Monomito de Joseph Campbell, caracterizado pelo uso de seu livre arbítrio para embarcar numa jornada inesperada, como guia para a história. Dentro desse objetivo, Jogador Nº 1 é perfeitamente certeiro. A narrativa é conduzida com clareza e objetividade através dos atos com um único propósito: entreter.
E o filme entretém com facilidade graças ao vasto, belo e rico universo que Spielberg elaborou ao lado da equipe de computação gráfica e a direção de fotografia de Janusz Kaminski. A apresentação do Oasis para o público é um deleite visual oriunda dessa parceria tão harmoniosa. Quando Wade vai colocar os óculos que dão acesso à realidade virtual, a câmera se move de um plano detalhe para um plano subjetivo que coloca o espectador dentro daquele universo. A sequência que segue é esplendorosa. As imagens, as possibilidades, as referências, tudo é apresentado num balé fluido de magia tecnológica. A riqueza do momento ainda é elevada graças à trilha sonora de Alan Silvestri que entende bem e incorpora o aspecto quase onírico às melodias que preenchem as variadas cenas e sequências.
Ao longo do filme, diversas sequências diferentes, mas igualmente bem elaboradas dão a esperança de que Jogador Nº 1 será mais uma obra prima de Steven Spielberg. A corrida de carros, logo no primeiro ato, por exemplo, é outro momento onde o diretor e a equipe demonstram sintonia e qualidades únicas. A ação é robusta, energética e absolutamente divertida. A câmera não utiliza a movimentação frenética tão conhecida para dar vigor ao momento. Ao invés disso, ela se mantém bem localizada e com uma edição que valoriza o tempo dos planos, permitindo que o público aprecie facilmente o espetáculo visual e de referências pop que se apresenta de maneira única. O ótimo uso do 3D ainda dá uma dinâmica emocionante ao momento. Tudo fica ainda mais empolgante quando vemos a interação de personagens como T-Rex (Jurrasic Park) ou o King Kong durante a corrida. Chega a ser difícil conter a emoção.
Outra sequência que merece destaque é a do Hotel Overlook, do O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980), que causa até arrepios de excitação. A reconstrução digital do Overlook é primorosa. A partir dela o clima de aventura ganha aspectos de bom suspense (jamais horror, afinal o filme é pra família). A sequência é eletrizante e até um pouco assustadora. A forma como a câmera transita pelos corredores e pelo famigerado quarto 237 consegue ao mesmo tempo homenagear e emular uma atmosfera sombria.
O primeiro ato e parte do segundo realmente prometiam uma obra prima. Mas após a metade do filme há uma queda no vigor na narrativa graças a algumas decisões pouco inspiradas do roteiro. E até mesmo a avalanche de referências disparadas por segundo e por frame perde um pouco da força.
A pouca elaboração dos personagens é um determinante. O problema não é exatamente a falta de profundidade dos personagens que, quando estão no Oasis, possuem química e dinâmica favoráveis que mantém a atenção do espectador graças, principalmente, aos simpáticos avatares e às curiosas habilidades. Porém, fora dele, onde o mundo é cinzento e estéril, o interesse cai consideravelmente. Os atores e atrizes não conseguem sair do caricato compreensível pela proposta da trama, mas pouco relacionável. Além disso, algumas relações entre eles são fracas demais para receberem tanto tempo em cena. O romance entre Wade e Art3mis/Samantha (Olivia Cooke), principalmente, é insosso e apressado. Se o roteiro consegue desenvolver uma boa relação fraternal entre eles, não obtém o mesmo êxito com o romance que acontece com uma pressa incongruente, resultando num final melodramático e demasiadamente romântico. Até mesmo o moralismo óbvio que o filme entregaria é prejudicado pela relação desnecessária e pouco elabora dos personagens.
Mas se houve economia na elaboração dos personagens, há abundância na cultura pop. De citações rápidas à sequências mais longas de ação, o filme não poupa esforços para agregar e mostrar tudo que pode sobre o pop. Essa é uma das forças de Jogador Nº 1. A profusão de elementos pop encanta, mas com um porém: são tantas que muitas vezes fica apenas um sabor de ‘quero mais’. A apreciação desses momentos é subjetiva. Eu, por exemplo, não tive tempo pra saborear as minhas referências favoritas. Embora o DeLorean de Marty McFly (trilogia De Volta para o Futuro) receba bom tempo em tela, personagens como Freddy Krueger (franquia A Hora do Pesadelo) e Jason (franquia Sexta-feira 13) têm apenas um ou dois segundo. É o tempo de assimilar a imagem e dar tchau. O mesmo aconteceu quando citaram Arrakis (Duna, de Frank Herbert). Ainda assim, a experiência é positiva e é divertido procurá-las.
Mas o que realmente impede que Jogador Nº 1 seja tão bom quanto poderia é o roteiro que abusa de artifícios preguiçosos para resolver pequenas complicações da própria história. Há um uso incômodo de deus ex machinas sempre que os personagens aparecem em situações mais “complicadas”, desde uma senha importante num post it evidente, até um personagem que possui tudo que o vilão precisa. Sempre há um artefato, um personagem ou uma coincidência que mantém a história no seu curso. E são nesses momentos, principalmente, em que nota-se a falta de ‘O’ Steven Spielberg. Se ele já indicava sua ausência através dos personagens pouco interessantes e relacionáveis, quando filme opta por soluções inverossímeis e aleatória que ele realmente faz falta, ela se faz sentir de maneira absoluta.
Jogador Nº 1 por pouco não é um novo clássico spielberguiano. O roteiro é ciente de si e opta por uma narrativa simples a fim de entregar o que realmente propõe: uma diversão visual e pop absolutamente envolvente e divertida. Mas ainda assim falha por focar demais na aparência em detrimento da estrutura que, por vezes, demonstra-se preguiçosa. Mas há de se considerar a subjetividade de um filme que homenageia de maneira tão apaixonada toda a cultura pop que ama e utiliza. Não é uma obra prima, mas não deixa de ser um grande trabalho de Spielberg. Um vislumbre da melhor fase da longa carreira do diretor.
Data de estreia: 29 de Março
Título original: Ready Player One
Gênero: Ação, Aventura, Ficção Científica
Duração: 2h20
Classificação: 12 anos
País: EUA
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Zak Penn e Ernest Cline (autor do livro homônimo no qual o filme adapta)
Edição: Sarah Broshar, Michael Kahn
Cinematografia: Janusz Kaminski
Trilha Sonora: Alan Silvestri
Elenco: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Waithe, T.J. Miller, Simon Pegg, Mark Rylance, Philip Zhao, Win Morisaki, Hannah John-Kamen, Ralph Ineson, Susan Lynch